Como a Autotransfusão Intraoperatória melhora a qualidade do sangue e reduz riscos durante o procedimento?

A cirurgia cardíaca é um dos procedimentos com maior risco de sangramento e quando se torna significativo, a principal consequência é a redução na oferta de oxigênio aos tecidos, devido à menor quantidade de hemácias circulantes, levando à necessidade de transfusões sanguíneas em muitos casos. Contudo, esta prática enfrenta desafios, como a escassez de hemoderivados devido à alta demanda em diversas áreas da medicina e ao número reduzido de doadores. Além disso, as transfusões podem acarretar complicações pós-operatórias e nem sempre são aceitas pelos pacientes, seja por questões de saúde, religiosas ou pessoais.

A Autotransfusão Intraoperatória surge como uma alternativa valiosa para a equipe cirúrgica, dependendo da necessidade do uso de hemocomponentes e neste texto, abordaremos o processo específico da autotransfusão nas cirurgias cardíacas.

Autotransfusação Intraoperatória – Cell Saver

A utilização de uma técnica denominada Cell Saver durante a cirurgia cardíaca, permite que o sangue perdido no campo cirúrgico seja aspirado, lavado e reinfundido no paciente, podendo recuperar em até 90% das hemácias perdidas durante a cirurgia. Uma técnica segura e eficaz, que reduz a utilização de hemoderivados, diminuindo as complicações pós-operatórias e reduzindo o tempo de internação e de infecções associadas. Em geral o uso do Cell Saver proporciona uma boa relação custo/benefício em cirurgias com perda mínima de sangue e que não possua contra-indicações para uso dessa técnica.

Concentrado de Hemácias

O concentrado de hemácias (CH) é obtido através da centrifugação de uma bolsa de sangue total. A densidade dos elementos do sangue determina a separação em três fases: plasma, camada leucoplaquetária e hemácias.

 

Representação de bolsa de sangue centrifugado, ilustrando as camadas de separação dos elementos sanguíneos.

 

A partir disso, a porção das hemácias é separada e recebe uma solução de preservação, resultando em uma bolsa de CH com hematócrito entre 50 a 70% e sob refrigeração, essa bolsa tem validade para transfusão de até 42 dias.

Com o passar do tempo, o baixo metabolismo das hemácias e dos poucos leucócitos da bolsa aumentam a concentração de ácido lático, produto do metabolismo anaeróbio. O pH da solução se torna mais ácido e tem a concentração de potássio aumentada, devido à ruptura das hemácias.

Como funciona o princípio da Autotransfusão?

O processo consiste em quatro etapas:
1 – Aspiração do sangramento, juntamente com solução anticoagulante (soro fisiológico e heparina), para um reservatório
2 – Centrifugação do volume aspirado para separação dos elementos sanguíneos – O plasma e a camada leucoplaquetária são descartados, juntamente com a heparina adicionada
3 – Lavagem das hemácias com soro fisiológico
4 – Recuperação das hemácias em bolsa de reinfusão, com hematócrito entre 50 e 70%.

 

Representação dos componentes utilizados na técnica de recuperação de autotransfusão intraoperatória.

 

O sangue do campo é aspirado pela máquina, armazenado, filtrado e centrifugado para concentrar as hemácias e separá-las dos demais componentes. As hemácias são lavadas com uma solução salina removendo os produtos endógenos e os produtos introduzidos no campo cirúrgico. Com isso são removidos restos de fibrina circulante, medicamentos dissolvidos no sangue, microagregados, hemoglobina livre, fatores pró-coagulantes e heparina (usada no processo de aspiração do sangue do campo cirúrgico). Assim, as hemácias lavadas são suspensas em solução salina e são encaminhadas para uma bolsa de reinfusão, prontas para serem transfundidas no paciente.

A heparina inicialmente é adicionada ao volume aspirado para evitar a coagulação do sangue na linha de aspiração e no reservatório de coleta. Após a centrifugação, a heparina se concentra na camada plasmática e é descartada.

Quando é indicado o uso da Autotransfusão?

A escolha quanto ao uso de sangue homólogo ou pelo uso do Cell Saver muitas vezes é analisada pelo custo-benefício. Um guideline da European Society of Anaesthesiology (Kozek-langenecker, et al., 2017) demonstrou que o uso desses equipamentos pode ser mais econômico em determinados pacientes, principalmente em casos de reoperação, em cirurgia de alta complexidade como por exemplo aneurisma de aorta, em pacientes com distúrbio de coagulação ou em pacientes pediátricos.

São indicados em procedimentos cirúrgicos com grande potencial de sangramento, por decisão clínica do cirurgião e/ou anestesista ou em procedimentos no qual pode ser necessário o uso de 2 ou mais unidades de hemocomponentes. A AABB (American Association of Blood Banks) recomenda o uso em casos em que a perda estimada possa chegar a 15 – 20% da volemia do paciente.

Além disso, pode ser utilizado nas seguintes situações:
– Pacientes que apresentam anemia ou fatores de risco aumentados para sangramento
– Pacientes com grupo sanguíneo raro ou sensibilizados por politransfusões anteriores
– Pacientes Testemunhas de Jeová
– Indicações cirúrgicas, como cirurgias Cardiovasculares, Ortopédica, Geral e Plástica
– Em casos de reoperações
– Neurocirurgia: aneurismas basilares
– Transplantes de fígado, rins, coração

Recentemente, (Novembro de 2024) em uma intervenção pioneira na cidade de Goiânia, a equipe do Hospital Mater Dei Goiânia conduziu um parto de alta complexidade, que envolveu um time multidisciplinar, para atender uma paciente diagnosticada com acretismo placentário – condição em que a placenta se adere firmemente ao útero, podendo causar hemorragias fatais durante o parto. 

https://cliqueabc.com.br/hospital-mater-dei-goiania-realiza-parto-de-alta-complexidade-com-tecnologia-de-ponta/

Dentre as contraindicações ao uso de recuperadores de sangue intraoperatório estão os procedimentos de pacientes contaminados e, principalmente, em cirurgias oncológicas.

Além do uso no intraoperatório, também pode ser usado ​​para lavar bolsas de sangue, melhorando sua qualidade. O processo remove hemácias danificadas, hemoglobina livre, plasma residual, potássio e proteínas livres. e dependendo do equipamento, é possível reduzir de 30 a 70% dos glóbulos brancos. Essa técnica pode ser aplicada na preparação do perfusato sanguíneo utilizado na CEC durante as cirurgias, garantindo ao paciente um sangue mais fisiológico e de melhor qualidade.

Tópicos mais questionados sobre o uso do Cell Saver / Fonte: Cardiosurgery Post

1 – O sangue recuperado contém heparina?

NÃO. A heparina é removida durante a lavagem, pois se concentra na mesma fase do plasma após a centrifugação.

2 – Se não tem heparina mesmo, porque o teste de coagulação ativado (TCA) dá resultado incoagulável?

Isso ocorre porque os fatores de coagulação e as plaquetas não estão presentes no sangue recuperado. Sem isso, o sangue não coagula; e não pela presença da heparina.

3 – Quando reinfundo o sangue recuperado, observo piora na coagulação do paciente. Porque?

Isso pode ocorrer em casos de grande volume processado. Apenas as hemácias são reinfundidas, uma vez que plaquetas e fatores de coagulação são descartados. A piora na coagulação do paciente pode ser explicada por uma plaquetopenia dilucional.

4 – O sangue recuperado deve ser reinfundido no paciente em quanto tempo?

A bolsa de reinfusão deve ser mantida em temperatura ambiente e ser reinfundida no paciente em até 4 horas. Recomenda-se fazer a reinfusão ainda em sala cirúrgica, a fim de evitar o risco de transfusão em outro paciente, mas se for realizada na UTI, a bolsa deve estar identificada com etiqueta do paciente e com a hora que o processo foi realizado.

Referências

Ministério da Saúde – Guia para o uso de hemocomponentes: Editora do Ministério da Saúde. 

Dossiê Autotransfusão Intraoperatória – Politec Saúde / Sistema de Autotransfusão XTRA®️

www.cardiosurgerypost.com/single-post/autotransfusao-intra-operatoria 

https://www.abatransfusao.org/equipamentos

 

Coração & Perfusão